![]() |
Graúna - Personagem do cartunista Henfil. Imagem retirada da internet, link aqui. |
Publicado no Estadão. http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,formigas-na-rapadura-,1065297,0.htm acessado em: 23/08/2013 às 21:30.
JOÃO UBALDO RIBEIRO
Acho que todo mundo lembra o que disse num discurso o presidente
Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você
pode fazer por seu país.” Eu estava lendo os jornais e aí me ocorreu, como já
deve ter ocorrido a muitos de vocês, que nossa prática política se orienta por
uma atitude oposta a essa exortação. Ou seja, queremos saber o que o Brasil
pode fazer por nós, mas não alimentamos muita curiosidade sobre o que podemos
fazer pelo Brasil. Isso se expressa no comportamento de nossos governantes, que
não disputam nada pensando no país, mas em abocanhar ou manter o poder, aqui
tão hipertrofiado, abarrotado de privilégios e odiosamente infenso ao controle
dos governados.
Para que mais, a não ser desfrutar desses privilégios, não se sabe,
porque não existe projeto, além da cantilena sobre justiça social, saúde para
todos, educação de qualidade e outras generalidades com as quais todos
concordam. Que modelo de estrutura socioeconômica queremos, que Estado
queremos, que país queremos, como chegaremos lá? Que propostas concretas são
oferecidas? Ninguém diz — e os programas partidários, como os próprios
partidos, causam constrangimento, pela ausência de ideias e compromissos sérios.
O negócio é se eleger e se abancar, depois se vê o que se pode fazer, conforme
a necessidade e a serventia para a permanência no poder. Na pátria, como se
falava antigamente, ninguém se mostra muito interessado.
Tudo o que se faz hoje é visando às eleições, ou seja, a continuação no
poder ou ascensão a ele. Descobriram agora essa lambança das concorrências em
São Paulo, que não é propriamente inédita na história nacional, e grande parte
da reação parece do tipo “viu, viu? nós rouba, mas cês também rouba!” Todo
mundo na vida pública rouba, o que pode não ser uma afirmação justa, mas já
virou axioma na descrição de nossa realidade e um dado importante em qualquer
equação política. Invoca-se o princípio da falcatrua consuetudinária. Ou seja,
se é ilegal, mas costumeiro, prevalece o costume e é considerado sacanagem e
falta de coleguismo fazer denúncias ou querer punições. Que outras novidades
têm para nos segredar? Quem não aposta que nada vai dar em nada?
O Estado às vezes parece ter as pernas bambas. Recomeçou o dramalhão do
julgamento do mensalão e muita gente não entende mais nada, a começar por esse
singular minueto processual, através do qual o Supremo Tribunal Federal vira
penúltima instância, dia sim, dia não. Todo mundo quer saber se as sentenças emanadas
do Supremo eram à vera ou não eram, devia ser simples de responder. Essa novela
vai por aí, se arrastando já há não se sabe quanto tempo, todo dia aparece uma
notícia inesperada e creio que nenhum de nós se surpreenderá se, esta semana,
for noticiado que a decisão final do Supremo estará condicionada à resposta a
uma consulta feita pela Câmara de Deputados, ou coisa assim, o que, com a gripe
que atacou um ministro, o impedimento de outro, e o atraso de outro, leva o
caso, para que tenhamos certeza de uma decisão justa, para depois do recesso do
Judiciário, no próximo ano.
Vimos também a cena envaidecedora em que nosso ministro das Relações
Exteriores se manifestou, conforme ouvi num noticiário, “com dureza”, sobre a
espionagem cibernética americana, numa fala dirigida em pessoa ao secretário de
Estado John Kerry. Disse umas verdades na cara do gringo, que o escutou com
atenção, cortesia e respeito, para logo após retrucar que nos devotava
desmesurado amor e descomedida amizade, mas continuaria a espionar e,
acreditássemos, era para o nosso próprio bem. Se não gostarmos, claro, temos
todo o direito de nos queixar ao bispo, ele compreende.
Esse mesmo ministério, aliás, deve estar às voltas com o perdão de
dívidas milionárias que alguns países africanos têm com o Brasil. Comenta-se
que isso é por causa do esquerdismo do atual governo, notadamente em sua
política externa. Comenta-se também que o perdão dessas dívidas possibilita que
os governos beneficiados fechem novos contratos com empreiteiras brasileiras. É
o que dá o envolvimento com setores notoriamente de esquerda, como nossas
empreiteiras, essa linha avançada do socialismo. Há apenas um ligeiro embaraço
na coisa, pois se sabe que as empreiteiras, com toda a certeza, vão receber o
dela, mas os financiadores, ou seja, nós, vamos contribuir mais uma vez para os
crimes e as contas bancárias de déspotas, genocidas e saqueadores de riquezas
nacionais
No cada vez mais fugidio setor de grandes realizações, a complexa
coreografia governamental se tem exibido em torno do trem-bala, que o pessoal
lá do boteco deu para chamar “trem-bala perdida”. O trem-bala é um exemplo
notável de aumento de custos recordista, talvez sem precedentes em todo o
mundo, porque já perdemos a conta de quantas vezes esses custos foram revisados
para cima. E agora li não sei onde, maravilhado com os nossos mecanismos de
distribuição de renda, que, mesmo que se venha a desistir do trem-bala, o custo
dele já terá sido mais ou menos um bilhão de reais. Não entendi direito, mas
não se pode deixar de manifestar admiração.
Diante dessa sarabanda agitada e da luta para não largar o osso,
lembro-me de quando eu era menino em Itaparica, punha um pedaço de rapadura no
chão e ficava esperando formigas brotarem do nada, várias espécies que só
tinham em comum gostar de açúcar. Umas ruças, grandalhonas, eram minhas
favoritas, porque ficavam frenéticas e não paravam um segundo, para lá e para
cá, em cima da rapadura, apesar de que, volta e meia, uma parecia se saciar e
caía imóvel — dura para trás, dir-se-ia. Eu não sabia, mas estava vendo o
Brasil, só que as formigas não se saciam e quem cai para trás somos nós.
0 comentários:
Postar um comentário
Comente, discuta, reflita, sua opinião é muito importante!.